sábado, 27 de março de 2010

.Afinal os elementos inimigos eram três vezes mais numerosos do que nós

Quando jovem lia nos livros de historia, episódios épicos em que se glorificavam os feitos heróicos das forças portuguesas por terem vencido exércitos várias vezes superiores em numero de homens. Na época não valorizava a questão, por supor que eram apenas estórias alteradas para enaltecerem a heroicidade de um povo.
Contudo esta minha concepção da história de Portugal viria a alterar-se drasticamente em 29 de Julho de 1974. Nessa longa e fatídica noite em que eu comemorava mais um aniversario natalício, tive ocasião de testemunhar como seu directo interveniente uma tremenda e horrorosa batalha, em que as forças inimigas eram três vezes mais numerosas que as heróicas tropas portuguesas.
No dia seguinte á noite em que se desenrolou esta infernal batalha e, na sequencia do reconhecimento exaustivo que levamos a efeito em todo o perímetro do nosso pequeno e isolado destacamento, os indícios recolhidos apontavam para um elevadíssimo numero de atacantes, cerca de 250 segundo os nossos cálculos.
Estes elevadíssimos números de elementos inimigos, seriam alguns dias mais tarde confirmados pelos elementos da PIM (Policia de Informação Militar), que as teriam obtido através da sua bem estruturada rede de informações. Encontravam-se juntamente connosco dois elementos desta PIM, desterrados neste cu do mundo, que era o pequeno e ermo destacamento do Luvo em cima da linha de fronteira com a Republica do Zaire, no extremo norte de Angola.
Tambem segundo as informações militares, este númeroso grupo inimigo enquadrado por instrutores Chineses, seria precedente da importante base da FNLA ( Frente Nacional para a Independencia de Angola) em Sangololo, situada a 180 Km da fronteira e teria sido transportado assim como o seu vasto armamento em camiões do exercito Zairense até muito proximo da nossa posição. Alguns camaradas que se encontravam de sentinela nessa noite de má memoria terão ouvido o ruido dos motores, mas relacionaram-no com o movimento de uma posição de paraquedistas Zairenses localizada a 200 m da fronteira.
Até agora só o relato oral dos meus camaradas de armas apontava para esta tão grande desproporcionalidade de números, evidenciando uma relação de três para um, na medida em que as nossas forças eram apenas compostas por cerca de oitenta homens e isto porque ao inicio dessa noite o meu grupo de combate que se encontrava no mato, em patrulhamento apeado de reconhecimento e nomadizarão se ter deslocado para o Luvo afim de reforçar este posto, devido ao facto de as informações militares apontarem com elevado grau de probabilidade um ataque de grande envergadura para essa mesma noite.
Só agora passado bastante tempo foi possível recolher documentação que comprovam estes tão elevados números, conforme documentos em anexo.
A Rasenha Histórica do Comando do Sector de São Salvador refere estes números no capítulo II da página 84. (Anexo I)
Igualmente o 7º Volume das Campanhas de África na síntese da actividade operacional do Comando de Agrupamento Nº 6008/73, menciona igual número. (AnexoII).
Ambos os documentos encontram-se á guarda do Arquivo Histórico Militar em Lisboa.
No 7º Volume das Campanhas de África é tambem referido que o posto do Luvo se encontrava guarnecido por dois grupos de combate da C. Cav. 8453 e também por uma “ Esq. canhão src 10.6 “ Para esclarecimento dos factos devo esclarecer que os referidos obuses,  que tinham por missão defender este posto, não  se encontravam nele instalados, mas sim posicionados na sede da C. CAV. 8453 “OS FELINOS” em Mamarrosa a 5 km de distancia e que cumpriram completa e cabalmente a missão que varias vezes tínhamos exercitado.
Foram sem dúvida de uma contribuição imprescindível para o desfecho do combate e pôr o inimigo em debandada. Eu próprio no abrigo das transmissões e colado ao rádio Racal tr28, transmiti em condições bastante adversas,durante toda a batalha as coordenadas que os dois obuses iam varrendo com o seu poder de fogo e creio que sem a sua prestimosa colaboração muito provavelmente não estaria hoje aqui relatando esta extraordinária e corajosa odisseia.
A PIM herdeira pós 25 de Abril, da intricada mas bastante eficaz rede de informações da PIDE/DGS, tinha conhecimento de que a FNLA de Holden Roberto planeava intensificar os ataques aos aquartelamentos de fronteira, incluindo um ataque de grande envergadura ao Luvo com o intuito de  tomar de assalto este pequeno posto avançado, afim de forçar o indeciso governo provisório de Lisboa, presidido pelo Gen. Spinola, a conceder a independência a Angola.
Estes graves e atrozes acontecimentos passaram-se paradoxalmente no dia em que os principais jornais portugueses publicaram a proclamação histórica do general Spínola então presidente da República Portuguesa, que reconhece desde essa data o direito dos povos ultramarinos á sua independência.
Este terá sido um dos últimos grandes ataques ás instalações das nossas tropas. No entanto a actividade inimiga embora esporádica continuaria, principalmente com a colocação de minas anticarro nos itinerários e só viria a terminar com a última acção em 29 de Dezembro de 1974.


ANEXO I


ANEXOII

quarta-feira, 24 de março de 2010

A minha chegada a Luanda

Recordando a minha chegada a Luanda no já distante ano de 1972, transcrevo seguidamente o primeiro capítulo de " A minha odisseia por terras Angolanas".
 Ao cabo de oito horas e trinta minutos de voo num dos dois Boeing 707 dos (TAM) Transportes Aéreos Militares, chego ao aeroporto de Luanda. Ao sair do avião tive o primeiro embate ao receber uma lufada de ar quente na cara, com uma temperatura superior a trinta graus e uma humidade sufocante, estava definitivamente em África.
Ao contrário da maioria dos soldados que viajavam enquadrados em companhias juntamente com os seus restantes camaradas, eu viajava só, vinha em rendição individual, isto é vinha substituir uma baixa em combate.
Devido ao motivo de viajar sozinho, encontrava-se á minha espera um jipe com o respectivo condutor que me transportaria até á (CMR 113) Companhia Metropolitana de Recompletamento. Esta companhia tinha sido criada exclusivamente para albergar o pessoal que chegava da Metrópole em rendição individual tal como eu e, que por aqui permanecia enquanto aguardava transporte para os vários aquartelamentos no mato.
A CMR 113 encontrava-se instalada no (RI 20) Regimento de Infantaria de Luanda, um grande quartel situado na periferia da cidade que era guarnecido por soldados do recrutamento local.
Três dias após a minha chegada a Luanda sou acometido por febres altas e dores de garganta, pelo que dou entrada na enfermaria do quartel onde permaneço internado durante cinco dias. A minha chegada a Angola estava a começar da pior maneira, no entanto a convalescença foi rápida e aproveitei a minha curta estadia de cerca de três semanas em Luanda, para conhecer esta maravilhosa e admirável cidade.
Luanda era efectivamente uma cidade majestosa cruzada por largas e belas avenidas, nas principais praças e cruzamentos o intenso transito era regulado por semáforos e polícias sinaleiros, estava deslumbrado com a sua beleza e grandiosidade.
A Avenida Marginal era fascinante assim como a admirável Ilha do Cabo conhecida por Ilha de Luanda com praias de águas cristalinas e temperaturas tépidas, encontrava-se ligada á cidade por uma ponte em betão.
As grandes cervejarias da baixa da cidade achavam-se repletas de soldados, que se encontravam em trânsito ou faziam parte da guarnição dos vários quartéis da cidade, aqui a cerveja que corria a rodos tinha preços acessíveis assim como o marisco.
Diariamente deslocava-me de machibombo (autocarro) até á baixa, mais precisamente ao quarteirão ocupado pelo restaurante Pólo Norte, a cervejaria Portugália e as pastelarias Gelo e Versalhes. Esta zona da baixa da cidade era um roteiro obrigatório para quem chegava ou partia de Luanda e portanto um local onde se podiam encontrar amigos e antigos camaradas de escola e do trabalho. Alguns deles já de volta a casa gastavam os últimos Escudos Angolanos na compra de peças de artesanato e outras recordações para trazerem de regresso á Metrópole.
Tento informar-me junto deles sobre a situação militar em Nambuangongo, local mítico no Norte de Angola para onde eu aguardava transporte afim de render um soldado de Transmissões caído em combate. Só alguns dias após a minha chegada a Luanda é que fora informado do local e da companhia para onde seria enviado.

Naquela época a guerra que travávamos nas três províncias ultramarinas (Angola, Moçambique e Guiné) era assunto tabu e a escassa informação que se tinha na Metrópole sobre a guerra colonial era controlada pala censura que transmitia a ideia de que não existia guerra em África. As mortes de soldados eram noticiadas como sendo vítimas de acidentes, e o que acontecia na longínqua e inóspita selva não interessava á população civil de Luanda ou da Metrópole. No entanto as informações que ia colhendo eram totalmente contrárias, eram-me relatados episódios de intensa actividade guerrilheira no Leste e, no norte de Angola principalmente na região dos Dembos onde se situava Nambuangongo.
Relatavam-me os meus amigos que o MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola) tinha instalado o Quartel-general da sua 1ª Região Militar na densa e cerrada mata do Canacassala a poucos kms de Nambuangongo, local onde as NT não conseguiam entrar. Também me apresentaram um homem bastante experiente nestas andanças da guerra, pertencia a um grupo de milícias conhecidos por OPVDCA (Organização Provincial de Defesa Civil de Angola), que tinha chegado há poucos dias do Onzo uma antiga roça de café perto de Nambuangongo cuja segurança era mantida por aquela força, este homem de cerca de quarenta anos, de raça branca mas de cor muito morena, pintou-me um quadro bastante negro e tenebroso daquela zona, na altura pensei que talvez exagerasse nas suas descrições, no entanto o medo e a incerteza começavam a tomar lugar na minha cabeça.
No contacto que procurava manter diariamente com os militares chegados do mato, começava a inteirar-me da enorme magnitude e horrores desta guerra esquecida. Na véspera da minha partida para o mato encontro-me com um soldado, que me relata que a sua companhia estacionada perto da fronteira Norte em Buela, próximo de São Salvador do Congo, tinha sofrido no anterior mês de Junho de 1972 uma tremenda emboscada, que causara sete mortos e treze feridos, entre os quais ele próprio e, que agora ao fim de vários dias de internamento no Hospital Militar de Luanda se encontrava a aguardar transporte para regressar de novo á sua companhia e ás agruras da guerra, estava bastante traumatizado psicologicamente e eu ouviu-o com atenção durante várias horas em que ele me caracterizou bastante bem o ambiente de incerteza, sofrimento e solidão em que viviam os nossos solados espalhados por estes lugares esquecidos da selva Angolana.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Cuvelai

Cuvelai no distrio do Cunene, Sul de Angola. Local no fim do mundo, onde eu e os meus camaradas da C.Caç.3386 passamos algum tempo da nossa juventude, continua a sofrer com as brutais inundações.
Eis aqui a noticia de hoje 19 de março de 2010 pulicada no Jornal de Angola.
O nível das águas das cheias do Cunene está a descer nas localidades mais afectadas pelas chuvas e as populações sinistradas, sobretudo no Cuvelai, enfrentam agora o atraso na chegada de alimentação, medicamentos, tendas e chapas, para reconstruir as casas dos desalojados. Os acessos por terra são impossíveis. Abastecimentos só por via aérea, mas faltam combustíveis para os helicópteros. Mas aos poucos tudo volta à normalidade. O problema é que ainda há muitos dias de chuva pela frente.


Agora que parou de chover são mais visíveis os estragos que as chuvas torrenciais causaram ao município do Cuvelai. Na comuna de Mukolongondjo foram atingidas 321 famílias, 15 quimbos e 34 casas desabaram. Dezenas de lavras estão inundadas e as plantações perdidas. Cinco escolas foram inundadas e o material didáctico ficou destruído.

Na comuna do Cubate as cheias desalojaram 453 pessoas e inundaram 186 lavras. O número de casas destruídas aumentou, mas ainda não foram divulgados os números oficiais pelos responsáveis da Protecção Civil.

Kalonga é também uma zona afectada pelas cheias. Os Bombeiros informaram que 455 pessoas foram desalojadas e 30 quimbos ficaram submersos pelas águas. Em Kalonga,17 casas, uma escola e uma igreja foram destruídas. Neste momento, estão 203 alunos sem estudar.

As cheias ainda amedrontam as populações do Cunene, porque o tempo ainda é de chuva. O sol brilha sobre o Cunene mas a qualquer momento podemos ouvir “o barulho dos tambores de São Pedro”, que é a chuva torrencial a bater nos telhados.

E sempre que chove, as populações da zona do Cuvelai sofrem, porque o rio transborda. Está lá a fonte principal de todas as inundações, mesmo depois da construção de alguns diques de protecção. A ponte de pedra, construída em 1961, até agora tinha resistido às cheias mas desta vez não aguentou.

As águas em fúria do rio Cuvelai conseguiram fazer um buraco bem no centro da ponte, o que impede a circulação automóvel. A ponte precisa urgentemente de uma reabilitação, porque já constitui uma via de risco, principalmente para os camionistas, que passam sobrecarregados de pessoas e bens. As populações que vivem nos arredores da ponte do rio Cuvelai, estão mais informadas sobre os perigos de pescar e nadar. Apesar de haver crianças que continuam a nadar nas águas barrentas, indiferentes ao perigo. Durante o dia, a área está a ser controlada por oficiais da Polícia Nacional para evitar que crianças e adultos se exponham a perigos.

Manuel Alegre em Nambuangongo

O poeta e deputado Manuel Alegre, antigo combatente em Nambuangongo voltou a este lugar mítico.
Para seguir esta viajem e, ouvir a declamação pelo proprio, in loco, do seu famoso poema " Nambuangongo meu amor"
clicar em:

http://www.youtube.com/watch?v=NJDKGHaSP08

Tambem se pode ouvir a magistral interpretação de Paulo de Carvalho, cantando o mesmo poema em:

http://www.youtube.com/watch?v=CTHsvb7OyNQ&feature=related

sexta-feira, 12 de março de 2010

A minha primeira viagem pela selva Angolana

MIKE
Ás três horas da manhã já eu me encontrava ao portão da M. M.(Manutenção militar),
ataviado com um cinturão e respectivos carregadores, arma G3,um saco verde enorme que fazia de
mochila e que continha dentro tudo o que eu fisicamente possuía naquele momento: esferográficas,
cartas, fotos e pouco mais.
Todo este material era completado por um par de botas reluzentes e um camuflado ainda mais
brilhante e que teimava em não se adaptar ao corpo de tão novo que era e que os “velhinhos”
reconheciam ao longe como sendo de um Mike (maçarico), até o próprio boné de tanta goma que tinha
ficava encarrapitado na cabeça deixando ver a pele branca da cara, pele inconfundível de um Mike,
que mesmo quinze dias de licença de mobilização passados nas praias da Caparica, não conseguiram
disfarçar e fazer passar à cor bronzeada que caracterizava um velhinho das matas de Angola.
O M.V.L. (Movimento de Viaturas Logísticas) partiu às 4 horas da manhã, a azáfama foi
grande durante toda a noite e provavelmente também o havia sido nos últimos dias.
Ultimaram-se os últimos preparativos para a partida dessa imensa coluna de dezenas e dezenas
de camiões, uns civis fretados pelo exército, outros militares que partiam habitualmente de 15 em 15
dias, levando o apoio logístico, rumo ao norte, pela chamada “estrada do café ”, que se internava pelos
“Dembos” até à capital da guerra, “Nambuangongo”, onde esta enorme serpente se dividia, seguindo
uma coluna mais para norte, pelo interior da densa selva até “Quipedro” e outra em direcção ao pôrdo-
sol até “Zala”, percorrendo a famigerada picada, que passava pela temível e de má memoria curva
do “bico de pato”.
As viaturas iam ficando pelos respectivos aquartelamentos onde eram descarregadas e esperavam
novamente pêlo regresso da coluna que ia engrossando de novo de volta a Luanda.
Dirigi-me ao comandante da escolta, dizendo-lhe que tinha ordens para me apresentar em
Nambuangongo, este apontando com o dedo, disse
- Pode-se ir acomodando naquela “berliett” - dirigi- me para lá.
Sentado ao lado do condutor encontrava-se um soldado armado até aos dentes. Ele era só fitas
de balas e granadas penduradas por todo o corpo, pensei para comigo, aqui devo ir seguro, disse- lhe
- Bom dia.
O condutor mandou-me seguir para a caixa
de carga, lá dentro já se encontravam duas mulheres
da tribo “Quicongo”, cada uma delas continha uma
trouxa feita de pano muito colorido igual ao que
habitualmente este tipo de mulheres enrolava na
cintura até à altura dos seios.
Seguia também connosco um soldado, o
completo oposto de mim, pensei para comigo, um
“velhinho” pela certa.
Envergava um camuflado velho, cossado e
algo rasgado, com um forte e grande bigode preto,
estava deitado com a cabeça em cima do seu saco,
igual ao meu, só que muito mais velho e sujo,
cinturão com 4 carregadores e a arma G3 que jazia
ao seu lado, voltei a dizer bom dia, mas ele fingindo
passar pelas brasas nem me respondeu.
Os” hunimoges” com a tropa da protecção
começaram a tomar posição, também chegaram
alguns “chaimites”dos “Dragões” que se distribuíram estrategicamente pela coluna.
Ás 4 horas em ponto aquela imensa fila de viaturas pôs-se em movimento. O meu companheiro
de viajem abriu os olhos, mirou-me e voltou a fechá- los, eu pensei, já lhe cheirou que eu sou um”
Mike”.
Rapidamente saímos de Luanda, depois de uma breve paragem no “controle”, assim se
chamavam as entradas e saídas de Luanda, que nessa altura se encontrava cercada por uma rede com
arame farpado.
Continuamos a rodar bem até para lá do “Caxito” onde terminou a estrada alcatroada e começou a
picada, os solavancos da camioneta atiravam com o meu companheiro de um lado para o outro o que o
obrigou a sentar-se, abriu novamente os olhos e mirou tudo à sua volta, pegou na G3, passou-lhe um
pano, puxou a culatra duas ou três vezes para se certificar que estava em condições, meteu uma bala na
câmara, colocou a patilha em posição de segurança e apertou-a entre os braços contra o peito
mantendo o cano virado para a picada.
As horas passaram, pelo meio da manhã, depois de algumas paragens técnicas para que a
coluna não se desmembra-se muito, o meu companheiro abriu a boca pela primeira vez e dirigindo-se
às mulheres, que provavelmente não o entendiam.
- Estão a ver estes dois grandes “embondeiros”, são conhecidos como as portas da guerra,
daqui para a frente, todo o cuidado é pouco. Compreendi imediatamente que a mensagem era para
mim.
A partir desse momento fiquei a magicar naquelas palavras e nessas duas enormes árvores.
Afinal eu estava a entrar nas portas da guerra. Estávamos a 6 de Agosto de 1972 dia do aniversário em
que fora lançada há vinte e sete anos atrás, a primeira bomba atómica para terminar com a guerra entre
Americanos e Japoneses, a “litle boy”.
E que guerra era esta para a qual eu me dirigia, que até tinha uma capital?
Talvez, fosse uma filha dessa guerra. É que às vezes as guerras maiores deixam filhas mais
pequenas…a minha mente estava num turbilhão de pensamentos, sem respostas.
Desperto destes pensamentos com um salto enorme da “Berliet”num dos vários buracos da
picada, que me fez saltar das mãos a G3,que eu apertava com imensa força. Era como se eu anda-se à
deriva no alto mar e a G3 fosse a minha única bóia de salvação
. Nesse momento, oiço a voz do meu cicerone, que continuava a narrar os locais por onde
íamos passando, sempre sem olhar para mim, mas eu sabia que era para mim que ele falava. Não havia
dúvida, ele estava a gozar a situação metendo-me medo, e estava a consegui- lo:
- Esta é a curva “mata alferes” – e contou – os turras deixaram uma carta no meio da picada, o
que levou a coluna a parar, um soldado recolheu a carta e entregou-a ao seu superior. No cimo daquele
morro encontrava-se um atirador furtivo que disparou certeiramente, matando de imediato aquele que
tinha recebido a carta.
Eu acabava de ouvir a história que dava o nome à curva por onde naquele momento passava.
Passados alguns momentos ouvem-se tiros na frente da coluna e o meu cicerone comenta:
- Não há problemas, são só o raio dos “Mikes”que nos vão a proteger, a fazer fogo de reconhecimento.
Mas os turras são espertos e mesmo que lá estejam emboscados não respondem, portanto, quando
passarmos por debaixo do morro, temos que estar alerta. - E continuou a falar – aqui nesta curva o meu
grupo de combate, que na altura fazia protecção ao M. V. L. teve duas baixas e eu fiquei com este
estilhaço no joelho, os gajos no Hospital Militar de Luanda não o quiseram tirar.
Transpirava por todo o lado, a humidade era muita, o pó levantado pelas viaturas colava-se por
todo o corpo e por tudo, as mãos transpiravam e tentava com elas manter limpa de pó a zona da culatra
da G3, o camuflado esse está agora mais teso, cheio de pó e encharcado no meu suor pegajoso.Penso,
se o tira-se nesse momento já seria capaz de se manter sozinho em pé.
O dia ia passando e a paisagem luxuriante e exuberante que vislumbrava era a da selva em toda
a sua grandeza e plenitude, por vezes passávamos por florestas completamente fechadas e quase
impenetráveis, em que a estreita picada parecia uma linha de comboio a entrar num apertado túnel,
com os ramos das árvores a bater-nos na cara, por outras, saíamos desse labirinto babilónico e
contornávamos morros carecas assim designados por serem desprovidos de arvoredo e repletos de
capim, nalguns sítios o capim era tão alto que quase atravessava a picada.
Entretanto o dia acabou por dar lugar à noite, naquelas latitudes o anoitecer é muito rápido e a
escuridão é como breu, medonha e horrorosa para um pobre “Mike.”.
Deu-se então uma nova paragem das viaturas
-Talvez seja alguma avaria ou pior – alvitra o meu companheiro – alguma “abatiz” (árvore
grossa cortada pêlo I.N. e atravessada na picada,). Estes motoristas são teimosos, sabem que têm que
apagar as luzes, mas não fazem caso, se os turras nos descobrem nesta medonha mata infernal,
estamos feitos, enqua nto eu tiver balas a mim não me levam eles.
Mais algumas pequenas paragens e de repente, do meio do nada, aparecem algumas luzes
mortiças em circulo
-Chegamos à “Beira Baixa” – esclarece o cicerone – eu fico por aqui, mas tenham cuidado com
a curva da morte, se fosse eu fazia-a a pé, sempre a pisar o rodado dos camiões por causa de alguma
mina – dito isto saltou com o saco ás costas e a G3 na mão dirigindo-se para dentro do recinto vedado
com arame farpado do aquartelamento.
As duas mulheres saíram umas dezenas de Kms mais á frente no “Onzo”.
Dei então por mim sozinho no estrado da “berliet”, só nos bancos da frente seguiam o
motorista e o tal soldado fortemente armado.
Então o medo que eu sentia transformou-se em pânico, continuei a transpirar abundantemente
passando continuamente as mãos molhadas pelo camuflado cheio de pó, suado e pegajoso.
Nambuangongo nunca mais chegava.
Enchi-me então decoragem e cheguei-me à frente da “berliet”, bati nas costas do soldado que   estava fortemente armado e humildemente  perguntei-lhe- Ainda falta muito para  chegarmos aNambuangongo? Este olhou-me de alto a baixo e gritou para o motorista-Olha pá! Temos aqui um“Mike” – o condutor sorriu e convidou-me a  sentar – me junto deles, jáque o assento corrido
  onde se encontravam dava para o condutor mais dois passageiros, claro que não me fiz de rogado, sentar-me com eles era precisamente o que naquele momento eu mais desejava.
Estava eu a acabar de me instalar quando o motorista aponta para umas luzinhas, lá num alto,
muito ténues a alguns Kms
-Ali está Nambuangongo, a Capital da Guerra, vamos poder descansar umas horas debaixo da
viatura e lá para o meio da manhã seguimos para Zala que fica a mais uns oitenta Kms.
Para mim, tinha chegado ao fim esta primeira viajem pelas tenebrosas matas Angolanas, de
cerca de 200Kms e que durara mais de 20 horas a uma media de cerca de 10Kms horários.
Á entrada de Nambuangongo, perto do posto de rádio, tendo ao lado esquerdo a capela, saltei da
“berliet”com o saco às costas e a G3 na mão.
E para meu grande espanto, os meus futuros colegas de transmissões, que já tinham recebido uma
mensagem de rádio a comunicar a minha chegada, para substituir uma baixa que tinham sofrido pouco
tempo antes, mas que nunca me tinham visto, reconheceram-me logo entre todos os soldados que
assim como eu também saltavam das viaturas. Não havia dúvidas, eu era um Mike, em toda a
plenitude da palavra.
Este episódio passou e agora eu já não devo parecer aquele “Mike”que saiu numa madrugada
de Luanda, com botas engraxadas e camuflado reluzente, no entanto, durante a minha permanência
Nambuangongo
nesta companhia que por tantas e tantas aventuras e desventuras passamos, eu fiquei sempre conhecido
como o Mike.
M. ALDEIAS
manuelaldeias@netvisao.pt

Calcorreando a savana


Após a força em que estava integrado ter sido considerada inoperacional, o que se deveu a diversas baixas e traumas sofridos na guerra no norte, tenho o privilégio de conhecer o extremo sul de Angola a cerca de 1600Kms de Luanda, junto à fronteira com a actual Namíbia, muito distante da guerra. Uma região de savana com um clima totalmente diferente, influenciado pelo vizinho deserto do Calaari, seco e árido, com temperaturas muito elevadas durante o dia e bastante baixas à noite.

Eu e o meu grupo estávamos colocados junto da ponte sobre o rio Cuvelai, um afluente da margem sul do grande rio Cunene, instalados em tendas de campanha a 200kms da pequena Vila Pereira De Eça, actual Ondjiva, na época capital da província do Cunene.
Naquela zona eram raros os aglomerados populacionais, tratava-se de uma imensa região pouco habitada, no entanto e à semelhança da restante Angola, era composta por inúmeras etnias e subgrupos étnicos todos pertencentes ao grande grupo Bantu, com afinidades linguísticas entre si.

Naquela zona a etnia prevalecente era constituída pelos cuanhamas, indivíduos de estatura bastante elevada e criadores de gado que se dedicavam à agricultura de subsistência e sobretudo ao pastoreio de gado bovino. Os cuanhamas tinham uma forte vocação guerreira, realizando ainda no princípio do século passado expedições de guerrilha e de saque sobre os seus vizinhos sobretudo os humbes e os ganguelas, espalhando o terror e a morte, capturando escravos e gado.
Todas estas e outras abomináveis histórias de horror eram-me contadas pelos mais velhos desta tribo, que eu ouvia com interesse apesar das dificultadas de comunicação, mas que não evitavam a boa relação que sempre procurei manter com estes povos.
Por sua vez a margem do grande rio Cunene era habitada pelos muilas, também eles criadores de gado bovino.
A característica que mais me marcou nas mulheres muilas foi observar de perto os seus penteados executados à base de estrume de vaca, fazendo-me recordar os elaborados penteados efectuados com terra vermelha e gorduras vegetais usados pelas mulheres Cokwe habitantes da Lunda Norte e que eu tive oportunidade de observar aquando das minhas longas viagens por todo o norte Angolano ao serviço da Força de Intervenção.
Dispersos pelo vasto sertão estes povos levavam uma vida bastante carenciada e primitiva, passando por necessidades e privações de toda a ordem. Estávamos no princípio dos anos setenta do século XX e como se deve compreender não existiam por estas isoladas e remotas paragens qualquer tipo de assistência medicamentosa, escolar ou de qualquer outra ordem.
Estas tribos habitavam dispersas pela vasta savana em quimbos familiares de construção muito simples, que eram constituídos por algumas palhotas delimitadas em círculo por uma alta cerca de paus a pique, onde também eram abrigados durante a noite os animais domésticos que assim ficavam mais a salvo dos leões e de outros animais selvagens que dividiam a savana com estas tribos.
Em volta destes quimbos era frequente verem-se alguns terrenos de cultívo onde praticavam uma parca agricultura de subsistência à base de uma variedade de milho-miúdo a que chamavam massango, estas pobres culturas eram por vezes invadidas pelos elefantes principalmente durante a noite.
Certa vez quando de uma das minhas habituais deslocações em patrulha auto, que geralmente tinham a duração de quatro a cinco dias e em que eu dormia debaixo da viatura militar, cheguei a assistir apavorado a uma destas incursões em que os indígenas faziam um imenso banzé com tambores e ostentavam tochas acesas para afugentarem os esfomeados animais, que respondiam com urros intimidantes e ensurdecedores ecoando pela noite escura da savana.
Também tive oportunidade de contactar com os Bosquimanes, os célebres intervenientes do conhecido filme “Os deuses devem estar loucos”, e que em Angola são conhecidos por Mukankalas ou Vassequeles, estes povos nómadas eram vítimas de segregacionismo pelos seus vizinhos negros que os perseguiam acusando-os de, entre outros factos, destes lhes roubarem o gado.
Estes pequenos e inofensivos nómadas vivem da caça e da recolha de raízes, mel e insectos. São de baixa estatura, muito vulneráveis, de cor amarelada, e nádegas proeminentes que segundo se diz constituem reservas de gordura para as épocas de escassez.
Uma das suas características que mais me chamou a atenção foi a sua forma peculiar e estranha de comunicação, que consiste numa grande variedade de sons com estalidos da língua, pelo que ouvia contar, esta comunicação era tão complexa que os outros povos das redondeza também eles exímios em falar as línguas vizinhas, não conseguiam apreender a forma de comunicar destes pequenos nómadas.
Recentemente li num jornal Angolano que estes povos estão em perigo de extinção em Angola, na província da Huila há apenas cerca de dez anos existia uma população de alguns milhares e agora estão apenas contabilizados perto de 200 indivíduos, os quais estão a ser alvos de uma ampla campanha de ajuda alimentar e medicamentosa por parte de algumas ONG, relata-se também que a diminuição dos seus terrenos ancestrais de caça, aliadas às doenças, fome e outras carências são as principais causas da brutal diminuição deste característico e emblemático povo que se julga ser o mais antigo de África.
Durante os nossos patrulhamentos pela imensa e remota savana levávamos como guia e interprete o Luandino, homem da tribo Cuamato, de idade indefinida, era bastante magro e de pequena estatura idêntica aos Bosquimanes, mas sem aquelas feições características, e de pele bastante mais negra, com uns dentes brancos de neve que mostrava generosamente nos seus rasgados sorrisos.
Entendia os diversos dialectos falados nesta vasta região e afirmava também falar Alemão. Órfão de pais desde muito pequeno, tinha sido recolhido numa missão Alemã, onde os missionários apenas falavam Alemão e poucas palavras de um dialecto que ele não conseguia precisar, era um exímio poliglota este nosso cicerone.
Ao fim de poucos anos passados na missão, fugiu da disciplina imposta pelos alemães e regressou à vida dura e penosa da sua tribo, mas também à ambicionada liberdade, construiu um pequeno quimbo onde vivia com as suas três mulheres e nove filhos.
Desde a nossa chegada a este paraíso vem-nos prestando os valiosos serviços de guia-intérprete, aproveitando para recolher todos os enlatados que nós rejeitamos para levar para os seus filhos.
Devido ao facto de eu transportar sempre junto a mim o rádio militar Racal TR28, o Luandino tratava-me carinhosamente por: Patrão Telefonia e cedo se apercebeu do meu interesse e fascínio por esta região virgem e pelos seus incrédulos habitantes, alguns deles foi com a nossa chegada que viram pela primeira vez homens brancos e vestidos de igual, montados em potentes cavalos berrantes. Luandino encarregou-se desde logo de satisfazer a minha curiosidade. Conversávamos imenso e fiquei com a ideia de que no final ele já se exprimia muito melhor em português, reciprocamente fui aprendendo várias palavras locais das quais ainda hoje recordo algumas.
Algum tempo após a minha chegada a estes longínquos lugares parto em patrulha auto num veículo militar de todo-o – terreno do tipo hunimog, após uma extenuante viagem de três dias pelos trilhos deixados pelos madeireiros e após o final destes, através das longas chanas sem arvoredo, apenas cobertas de um reles capim ressequido. Era já de noite quando chegamos a um modesto e isolado quimbo unifamiliar.
Extenuado e coberto de pó pegajoso preparava-me para passar a noite debaixo da viatura que me protegeria um pouco da friorenta humidade nocturna, quando repentinamente sou interrompido pelo Luandino que me diz:
- Patrão Telefonia, homem do quimbo quer que tropa com suas espingardas mate leão que anda comendo vacas.
-O que dizes? Ele pensa que somos caçadores? Retorqui!
Então o Luandino explicou-me que alguns leões quando chegam a velhos e não podem caçar, costumam atacar o gado, principalmente durante a noite, chegando a saltar as paliçadas.
Ficamos atemorizados, estávamos armados sim! Mas não com armas próprias para caça, e sem conhecimentos para enfrentar leões encurralados e na espessa escuridão da desconhecida savana.
Apavorado resolvi pernoitar no interior do quimbo, com o rádio e a arma G 3 a fazerem de almofada, pedindo à Virgem Maria que o leão não aparecesse. A longa noite, de perto de doze horas, foi muito fria, interrompida inúmeras vezes pelo gargarejar assustador e sinistro das irritantes hienas. A Virgem mais uma vez esteve ao meu lado e os raios de Sol finalmente começaram a penetrar a escuridão da infindável savana, sem sinal dos temidos e esfomeados leões.