sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Capítulo XXII

O enorme saco das rações
O Farsola parecia ganhar novas forças nas pernas cansadas, sob o peso do enorme saco das rações que transportava ás costas e, da arma G3 que apertava nas mãos suadas e feridas pelo capim seco e áspero.
Ele e o seu grupo de combate, tinham deixado para traz uma mata virgem tão cerrada, que o caminho era aberto à força de catana empunhada pelo soldado da frente, o qual era rendido periodicamente.
Agora que entravam no espaço aberto, estavam a ser fustigados pelo abrasador sol Africano e, pior do que isso as balas voltavam de novo a assobiar por sobre as suas cabeças.
Deixava-o desesperado ouvir os irritantes tiros das temíveis costureirinhas que, com os seus cadenciados estampidos metálicos lhes faziam recordar a máquina de costura da sua mãe, na longínqua e saudosa Metrópole.
De um salto levantou-se da pequena cova em que se abrigara, limpou os olhos das gotas de suor pegajoso que lhes turvavam a visão, ajeitou à cinta as pesadas cartucheiras que transportava enfiadas no largo cinturão e, correu na pegada do seu camarada da frente e dos restantes soldados, que em fila indiana iniciavam a subida de um alto morro coberto de capim rasteiro, onde acabariam por ficar encurralados, perseguidos por um forte grupo de guerrilheiros. Valeram-lhes na altura os helicópteros Puma que, em desespero de causa e com imensas dificuldades os tinham conseguido resgatar.
Após ser evacuado e ao chegar à base avançada, o médico achara que o seu estado de saúde era tão débil que decidira mandar colocá-lo a soro.
Revia em pensamento toda aquela arriscada e terrivel situação passada alguns meses antes na Força de Intervenção e, maldizia a sua sorte por agora se encontrar deitado numa cama de hospital, a braços com uma grave crise de paludismo.
Afinal encontrava-se lutando na maldita guerra em Angola, tinha deixado para trás a vida boémia passada no Intendente e no Bairro Alto.
Aí sim! Esses eram os seus locais de caça, envolvendo-se em cenas de pancadaria com os outros chulos, pela posse e protecção das prostitutas mais rendosas. Ou ainda juntamente com o seu gang de Cascais, assaltando potentes automóveis com os quais disputavam renhidas corridas pela Marginal em direcção a Lisboa, acabando por vezes com aparatosos despistes na curva do Mónaco.
A despedida da sua Aurora não tinha sido fácil. A rapariga de apenas dezanove anos de idade, enfrentaria a partir daí a concorrência das demais prostitutas e, ficaria sujeita a ser roubada e maltratada pelos outros chulos.
- Quanto tempo a Aurora conseguirá resistir sem a protecção de um homem? -Perguntava-me ele várias vezes, e acrescentava – Passado todo este tempo provávelmente já terá arranjado algum gajo, que lhe dê carinho e a proteja na dura e espinhosa vida da prostituição –
Conhecedor de toda esta problemática o Farsola vivia atormentado pelo ciúme e, receoso de vir a perder a mesada que a Aurora lhe enviava periódicamente em valor declarado, ou simplesmente alguma nota de quinhentos escudos dissimulada no interior das longas e amorosas cartas, em que a rapariga lhe jurava amor eterno.
Manuel Aldeias




quarta-feira, 20 de outubro de 2010

CAPÍTULO XXI

Os meninos da Sanzala
O boato de que um soldado vagueava pela Sanzala distribuindo latas de conserva, correu rápido por entre as pobres e famintas crianças e, em poucos minutos encontrava-me cercado por um enorme bando de meninos descalços e esfomeados, que se atropelavam uns aos outros na ânsia de serem presenteados com algo que lhes aliviasse um pouco a fome, ou apenas servisse de conduto para acompanhar a sempre presente fuba que os seus progenitores cultivavam, de modo incipiente nas suas pequenas lavras que amanhavam junto ás ultimas palhotas.

A fuba ou farinha de mandioca extraída a partir das raízes deste tubérculo está muito vulgarizada emAngola e, constitui o principal alimento destas pobres gentes.
Até ser transformada em farinha, a mandioca passa por um longo processo de transformação. Após serem colhidas as raízes são colocadas de molho em água, posteriormente secas ao sol e finalmente moídas com um pau num pilão de madeira, até serem transformadas numa farinha branca a que chamam fuba.
Naquela tarde maravilhosa em que o sol brilhava com intensidade num exuberante céu azul, saíra do quartel onde me encontrava a aguardar transporte para o Luvo, uma base das nossas tropas em cima da linha de fronteira. Vinha carregado com algumas latas de conserva surripiadas das rações de combate, que introduzira no saco verde da tropa e também nas grandes algibeiras do camuflado.
Cedo descobri que eram poucas as latas para tantos meninos famintos, no entanto sentia-me bem comigo próprio, por estar modestamente a contribuir para mitigar um pouco a fome destas pobres crianças.
Muitos desses meninos frequentavam a escola primária existente na Sanzala e, quase todos entendiam Português, no entanto eu também já compreendia muitas palavras de Kissolongo, o dialecto local, o que facilitava bastante o diálogo.
Ao fazer a habitual pergunta: O que queriam fazer quando fossem grandes? Um dos mais velhos, descalço e vestido apenas com uma velha e esfarrapada camisola adiantou-se para dizer um pouco envergonhado.
- Patrão. Eu quando for homem quero ser médico. Para poder curar o paludismo que já matou meu pai, minha mãe e meus dois irmãos.
Outro ainda muito novato e que me disseram ser um dos quinze filhos do feiticeiro e curandeiro local, gritou dizendo.
- Eu quero ser enfermeiro dos tropas, para dar injecções nos doentes.
Achei estranha aquela afirmação vinda de um filho do curandeiro. Pelos vistos não acreditava nas artes curativas do pai, ainda tentei indagar junto do mesmo a razão de tal atitude mas este fechou-se no seu mutismo não me respondendo.
Tanto anos passados sobre este episódio, ainda pergunto a mim mesmo muitas vezes.
Qual terá sido o futuro desses meninos? Aqueles que tanta esperança demonstravam, mas que pouco tempo depois destes factos se viram a braços com uma atroz guerra civil, que devastou o vasto território Angolano durante vários anos.
Os meninos daquele tempo distante serão agora homens com mais de 40 anos, no caso de serem vivos, o que não será muito provável num país em que a esperança de vida ronda os 42 anos.
Manuel Aldeias

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

CAPÍTULO XX

O amuleto
A meio da tarde, sob um sol escaldante a brilhar no céu tingido de um azul perfeito e inteiramente límpido de nuvens, dirigi-me para a Sanzala que ficava do outro lado da pista de aviação.Era uma grande Sanzala habitada por largas centenas de pessoas da tribo kicongo. Muitas delas diziam-se descendentes dos antigos reis do Congo, eram animistas com as suas crenças ancestrais e assentavam o seu modo de vida nos moldes da cultura tradicional. No entanto devido ao contacto com os brancos e, à influencia das missões católicas começavam a evidenciar alguma tendência para a vida sedentária e para o pequeno comercio. Enfim, começavam a adoptar hábitos da cultura ocidental embora temperados pela tropicalidade. As autoridades militares acusavam-nos de ociosidade, de serem pouco dados ao trabalho e não serem receptivos ás iniciativas governamentais, no entanto toda esta atitude talvez fosse resultante da rejeição ao colonialismo, da decadência da sua cultura tradicional e ainda aos hábitos herdados da extinta monarquia do Congo.
Também se admitia que poderiam ter contactos com o inimigo e com as populações refugiadas na mata e, assim sendo um soldado a passear solitário como era o meu caso teria que ter alguma precaução e não se aventurar muito no interior da Sanzala.
Devido á tarde de calor abrasador a maioria das pessoas encontravam-se recolhidas no interior das suas cubatas, construídas em adobe e cobertas com uma grossa camada de capim que alem de as tornarem bastante frescas, também as protegiam das fortes chuvadas que muitas das vezes caiam ao fim de tarde e tudo alagavam.
Demasiado magras, completamente descalças, vestidas de modo tradicional com uns panos muito garridos atados à altura do peito e, tagarelando ruidosamente regressavam das lavras por um carreiro que conduzia á Sanzala, duas jovens mulheres que me miravam curiosas e admiradas por verem um soldado branco que caminhava sozinho àquela hora do dia em que o sol abrasava. Geralmente os soldados quando se deslocavam á sanzala faziam-no em grupo e, nunca sob aquele calor sufocante.
Uma delas transportava à cabeça um feixe de lenha, enquanto que a outra alem de uma criança de meses que trazia ás costas atada com um pano, ainda equilibrava graciosamente sobre a cabeça uma cabaça com água, passaram por mim galhofando e rindo deixando ver os seus belos dentes brancos como a neve.
Entretanto quando me preparava para regressar atravessando de novo a pista, ouço uma voz que gritava.
- Patrão. Patrão. Espera!
Voltei a cabeça na direcção da Sanzala e, qual não é o meu espanto ao reconhecer correndo na minha direcção o meu antigo companheiro de viagem, o meu salvador da terrível diarreia, o nosso ancião de braço ao peito, que ao chegar junto de mim me estendeu a única mão livre dizendo.
- Toma patrão, pendura nos cabeça, dar sorte.
Aceitei de bom agrado o amuleto que me era oferecido. Tratava-se de um minúsculo e encantador crocodilo do tamanho de um polegar, artisticamente esculpido em marfim e preso por um fio de cabedal delicadamente entrançado, que eu imediatamente coloquei ao pescoço e usei durante largo tempo. Até que infelizmente, um dia o perdi ao atravessar a vau um rio tão caudaloso, que a sua forte corrente me dava pelo pescoço e que se dizia estar repleto de crocodilos. Ironicamente ficou a fazer companhia aos seus congéneres de carne e osso.
Manuel Aldeias

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Capítulo XIX

Invadido pela nostalgia
Naquela tarde abrasadora de calor escaldante e saturada de humidade, com o pouco dinheiro que o meu amigo Farssola me havia emprestado e que apenas dava para uma cerveja, encontrava-me sentado á mesa do Café Cressa que àquela hora estava praticamente vazio. Os meus pensamentos divagavam para longe até à saudosa e distante Metrópole e, recordava os meus familiares e amigos que não via há praticamente dois anos.

Para cumprir o serviço militar obrigatório, vira-me obrigado a interromper abruptamente o meu trabalho no Arsenal do Alfeite, onde já trabalhava á cerca de 3 anos.
Pela minha mente também passavam em turbilhão todos os meus colegas da Escola Emídio Navarro em Almada, onde eu frequentava o Curso Industrial em regime nocturno como trabalhador estudante
Geralmente depois da saída do trabalho juntamente com um grupo de colegas, dirigíamo-nos ao conhecido Café Central de Almada e ao seu vasto e acolhedor salão de bilhares, onde disputávamos renhidas partidas de snooker. Ocupando deste modo o tempo até ao início das aulas que começavam invariavelmente às 19 horas e, se prolongavam até ás 22 horas e 45 minutos.
A maioria destes meus colegas e amigos também agora se encontravam combatendo, numa das três frentes desta suja e cruel guerra, alguns aqui em Angola, outros em Moçambique e, outros ainda na Guiné.
Encontrava-me completamente absorvido por estes pensamentos nostálgicos que me toldavam a mente, quando sinto uma mão no ombro. Era o Eusébio, o mulato empregado de mesa do café que me pergunta, com o seu sotaque característico.
- Então patrão. Vai mais uma cuca fresquinha?
- Não Eusébio, por hoje já tenho a minha conta. Sabes? Ultimamente não tenho andado bom do estômago.
Paguei a cerveja com os últimos Angolares cedidos pelo Farsola e, invadido pela tristeza e pelo ressentimento com a maldita guerra, saí do café caminhando lentamente pela rua principal.
Já o sol se escondia no horizonte quando regressei ao quartel, vislumbrando à distancia o intenso mar verde da floresta, que se ia cobrindo lentamente com o manto escuro do céu, preparando-se para adormecer até que de novo o sol a raiasse com o seu brilho intenso.
Entrei para o refeitório afim de assistir ao detestado rancho, mas nessa noite pouco ou quase nada comi do intragável arroz com salsichas.
Manuel Aldeias