quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Capítulo XXVI

AEROGRAMA ESCRITO PELO FARSOLA À SUA QUERIDA AURORA
Querida espero que ao receberes este meu aerograma te encontres de boa saúde que eu felizmente estou bem.Aqui onde agora me encontro neste buraco infecto chamado Luvo, junto á linha de fronteira norte com o Congo, é um local remoto e bastante isolado, não existem quaisquer populações civis, todos se refugiaram no outro lado da fronteira quando a guerra rebentou em 1961, para onde quer que estendamos a vista só se vislumbra capim muito alto ou florestas virgens cerradas.
Aqui no cu do mundo até a tropa é reduzida, apenas somos dois grupos de combate totalizando cerca de 50 soldados. Como na maioria dos inúmeros aquartelamentos do exército Português espalhados pela imensidão do sertão Angolano vivemos em condições miseráveis, instalados em barracas de madeira, cobertas com chapas de ferro zincadas, onde somos obrigados a suportar o intenso calor Angolano. A água é recolhida num ribeiro próximo, afluente do rio Luvo e transportada num depósito puxado por um veículo hunimog, os guerrilheiros por vezes esperam-nos emboscados junto do local de recolha do precioso líquido e por conseguinte não podemos descurar a segurança, temos que nos deslocar sempre atentos e fortemente armados.
Só durante a noite temos energia eléctrica produzida por um monótono gerador, este tem como principal finalidade iluminar a periferia da pequena base, facilitando o trabalho das sentinelas que nos garantem a segurança durante as intermináveis e perigosas noites.
Em toda a volta deste pequeno quadrado com perto de 100 metros de lado, existe uma cerca de arame farpado e um vala funda, onde nos refugiamos durante os ataques inimigos, também não dispomos de fogões a gás ou eléctricos, para cozinharmos os alimentos socorremo-nos da muita lenha existente nas densas florestas que nos cercam.
Ao menos quando da minha estadia em Nambuangongo alem de haver muita tropa, também era rara a semana em que não fossemos visitados por alguma coluna militar de passagem por aquele estratégico local. Dali partia uma picada que seguia para norte até Quipedro e que passava por Quixico e pelo pequeno destacamento que protegia a ponte sobre o rio Lué e, também uma outra que partia na direcção do por do sol até Zala e, que passava pela Madureira e pelas temíveis e de má memoria curvas do bico de pato e da camioneta vermelha.
Tal como aqui, também Nambuangongo era cercado pela cerrada selva, tínhamos por vizinhos a perigosa e densa floresta virgem do Canacassala, a tal onde o MPLA tinha instalado o Quartel General da sua 1ª Região Militar, sempre que nos deslocávamos para aquelas bandas éramos corridos a tiro.
Recordo-me daquela vez em que as altas chefias militares em Luanda, decidiram que a picada chamada via-lactea e que atravessava aquela terrível e perigosa mata, deveria ser limpa do denso matagal que a havia invadido para poderem mais facilmente chegar perto do coração inimigo, no entanto e apesar do grande numero de tropas envolvidas na segurança das máquinas de engenharia da Junta Autónoma das Estradas de Angola, o inimigo só nos permitiu chegar ate junto da ponte sobre o rio Onzo.
Fernando Farinha repórter da revista semanal Noticia que é publicada aos sábados em Luanda, acompanhou-nos para fazer a reportagem daquilo que as autoridades militares Portuguesas propagandeavam insistentemente, que os guerrilheiros não controlavam nenhuma parte do território Angolano e que as nossas tropas se deslocavam por todo o imenso território. Era uma pura mentira.
Olha, aquele meu camarada, o transmissões, a quem nós chamamos Mike, não sei se irá aguentar os dois anos de comissão, está muito magro, pesa menos de 45 KG e o rádio que transporta ás costas é muito pesado com cerca de 14 KG.
Tenho muita pena dele e por vezes nas operações apeadas ajudo-o a transportar o rádio. Quando estávamos na Força de Intervenção e nos deslocávamos para o mato, o exército contratava dois trabalhadores Bailundos, um para o ajudar a transportar o rádio e outro para ajudar o enfermeiro no transporte da bolsa de enfermagem. Agora aqui como não existem populações civis isso é impossível, está bem que aqui nas operações apeadas não se anda tanto a pé, no entanto esporádicamente aparecem algumas bastante extensas, em que temos que palmilhar dezenas e dezenas de quilómetros pelas cerradas e quase impenetráveis florestas virgens. Nessas operações algumas delas com a duração de 4 e 5 dias, temos que transportar além da arma G3 e de 4 carregadores à cinta, um saco ás costas com as rações de combate e a água para todos esses dias, eu por vezes ainda coloco no saco uma caixa de balas como reserva, não vá o diabo tecê-las.
Manuel Aldeias 

17 comentários:

Priscilla Marfori... disse...

Oi querido, passando e deixando meus cumprimentos e admiração!

B-Jos.

Vitor Chuva disse...

Olá, Manuel!

Os "famosos" aerogramas, sem selo, e com espaço bem limitado para neles escrever...aqui de novo trazidos à memória. E neles foi então escrita uma boa parte daquilo que foi a guerra no ultramar, na parte que mais directamente nos tocava - e sempre com a preocupação de não assustar quem os lia...
Muito bem aproveitada a ideia, para nele dar ideia da vida difícil, e arriscada, de quem então a eles recorria.

Gostei de ler!
um abraço amigo.
vitor

Dora Regina disse...

Manoel, gostei de ler o aerograma, tive a oportunidade de enviar alguns...
Vim conhecer teu espaço, já gostei!
Tenho um carinho muito grande por Portugal, meus avós paternos eram portugueses, portanto, parei por aqui sendo tua seguidora.
Obrigada pela visita e comentário, fique a vontade para voltar outras vezes, para mim será uma alegria renovada.
Paz e bem!

Rogério G.V. Pereira disse...

Meu caro,

Caminhos próximos os que tivemos. Cartas parecidas que escrevemos.
Sensibilidades por certo também parecidas, pois ambos fomos buscar estas memórias de coisas vividas. Vou ter que voltar
para ler todo o material...

Foi um prazer (re)encontra-lo!

Abraço

Regina Laura disse...

Manuel, a cada situação relatada por você é uma emoção nova.
É um outro mundo para quem, como eu, jamais vivenciou algo parecido.
Aproveito para agradecer muito suas palavras sempre tão gentis.
Fico muito feliz mesmo!
Beijão

franciete disse...

Meu amigo cada uma mais comovente que a outra, é sempre com bastante atenção que venho aqui ler suas missivas. Mas meu amigo para todo este relato quanto aerogramas eram precisos, pois cada um só se podia ler meia dúzia de palavras, e, a gente lia e relia, ainda assim nos tivesse passado alguma palavrita que não se desse por ela.
De certeza que o meu amigo trouxe um calhamaço do tamanho dos lusíadas, para nos contar todas estas histórias, e que bom sinal. Hoje as podermos ler porque assim chegaram até nós.
Beijinhos de luz e paz em seu coração.

Unknown disse...

Escrevi muitos para a Guiné,para um tio meu a mandado da minha avó materna,era eu que os lia também no retorno.Recordo bem ,era impressionante alguns coisas que lia e que hoje ainda recordo.

Abraço.

Maria Rodrigues disse...

Amigo é sempre um prazer ler as suas crónicas. Aproveito para agradecer as mensagens que deixa no meu humilde cantinho.
Tenha um fim-de-semana cheio de paz e felicidade.
“Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.” (Mahatma Gandhi )
Beijinhos
Maria

Janaina Cruz disse...

Ó Manuel, eu fico aqui comigo a imaginar o peso de coisas carregadas por pura necessidade de alimentar-se, proteger-se hidratar-se, o frio e o escuro, somados a solidão (mesmo que acompanhada), e a saudade de seu amor...
Há momentos em que plantamos tristezas dentro de nossas almas.
Mas isso tudo é passado, teu presente é iluminado e tu a dividir conosco.
Deus te abençoe, e aproveita bem teu fim de semana.

franciete disse...

Amigo passei para deixar em seu lar o meu sincero abraço, e beijinhos de luz e paz para toda a família.

Maria Helena disse...

oi ,já tinha lido este texto mas voltei para rele-lo. Agora estou ouvindo uma música sobre o mar, e junto a este som que coloriu de encanto este texto de um homem que relata experiências aparentemente hostis, mas que não ficaram pela qualidade do seu coração. este relato ilustra o que desejava saber sobre estas guerras na África. Deus sempre nos envia as respostas que queremos, muito bom conherce-lo. Vou continuar lendo...Uma braço fraterno

Carla Ceres disse...

Olá, Manuel! Você não faz ideia de quão fascinantes seus textos soam para quem vive longe dessa realidade. Parecem vir de algum ponto entre o real e a ficção. O estranhamento e a linguagem elegante trazem um quê de poesia. Parabéns pelo blog!

artur aurelio harpa barata disse...

Manuel também estive aí e esqueceste de falar da Picada da Turtura. Que ficava entre Nambuangongo e Quixico, e só pensar que íamos para essa picada fazer operações, já o receio era brande, mas depois de sairmos das viaturas tudo era esquecido, e havia que andar cinco dias nessas matas serradas, numa operação de manhã quando acordamos estávamos cheios de carraças em todo o corpo o cansaço era tanto que de noite nem demos por elas.
Um abraço

Anónimo disse...

Os meus parabens pelo aproveitamento da ideia do emblematico aerograma, para caracterizar as condições dezumanas em que viviamos em Angola, em Moçambique e na guiné, no tempo da guerra colonial.
José Almeida

João Abreu disse...

Na minha companhia,não tinhamos pessoal negro para carregar a Racal,mas sim alguns colegas do pelotão que ajudavam...Quanto as operaçãos,eram de facto 3,4 e 5 dias,mas tudo se fez,uns sofriam mais do que outros,principalmente,os tropas até alferes, o resto dos oficiais daí para cima,era fazer comissões e o verbo mamar.

caçador disse...

realmente era um lugar muito ruim muitas matas sem se ver uma única pessoa.a não ser umas visitas dos turras nas picadas um capim muito alto e nossa saliva logo ficava amarela era um lugar triste pois não sabíamos a onde estávamos,mas tudo foi o passado mas eu combati por Portugal e não por nenhum regime e só pois aquilo era muito nosso,se não soubemos fazer uma politica correta ai a outra coisa e realmente nós nunca fomos bons de politica.e só

José Mota Vieira disse...

O teu texto do aerograma relata bem o que passamos em Angola, muito bem escrito e relembra as famosas operações em que éramos
obrigados a participar em condições desumanas, em nambu as condições eram ligeiramente melhores